quarta-feira, 30 de maio de 2007

DICA DE DOCUMENTÁRIO: "BOCA DE LIXO"


Documentário de Eduardo Coutinho, relata o destino de nossos lixos e a imensidão do campo repleto de detritos e bichos dos mais variados tipos e mostrando ainda imagens de seres humanos como eu ou você disputando o mesmo alimento que há poucos instantes atrás vimos os animais disputarem.
Tudo começa com um caminhão despejando os detritos e o realizador, direcionando nosso olhar através de planos detalhes, onde nos mostra o objeto de disputa daquelas pessoas: sobras de frutas, legumes, carnes e outros alimentos desprezados. A câmera passeia pelo lixo e vai encontrar urubus e outros animais alimentado-se dele.
E é através do lixo, ainda, que seremos introduzidos às histórias e visões de mundo daquelas pessoas que, surpreendentemente para eles são habitantes privilegiados das cidades que esnobam algo que ainda tenha proveito, sendo o dever deles o converter em material de consumo e sustento já que não tiveram tanta sorte.
Os catadores se escondem, protegem seus rostos da intromissão do invasor e nas imagens feitas pela câmera a nossa conclusão: eles têm vergonha de trabalharem ali naquele local que para nós, espectadores, é desconcertante. Estão ali, ainda segundo nossas visões, porque não há definitivamente outra opção, vítimas que são de um sistema social injusto e contraditório etc. etc. e seguimos, seguros, lançando mão de um sem número de outros jargões e lugares comuns, adquiridos ao longo de nossas vidas cômodas e confortáveis, bem diferente daquele mundo objeto.
Mas aí quando adquirimos a certeza de que já entendemos tudo, nos surpreendemos outra vez, pois são montados depoimentos de três catadoras de lixo que afirmam estar ali por opção, que preferem o lixo, no dizer de uma delas, a trabalhar em casa de família, segundo outra, "tem uma porrada de mulher aqui, uma porrada de homem… que trabalha aqui porque é relaxado, porque prefere comer fácil, porque aqui cai batata, porque aqui cai de tudo pra se comer, muita gente come porque quer", e outra, "trabalhar aqui… eu tenho orgulho de trabalhar aqui, porque não tenho que ir na casa de ninguém pedir…”.
Depois destes três depoimentos, nossa certeza dilui-se e dá lugar a uma inquietação que nos faz grudar nas histórias e naquilo tudo que aquelas pessoas nos tem a dizer, e a única certeza daí por diante é que não há mais certezas; São intercalados também depoimentos de pessoas que hora afirmam, sem problemas, que trabalham sim ali e que o fazem por gosto; com depoimentos e/ou gestos de pessoas que o negam categoricamente.
Quando Coutinho se apresenta diante dos catadores, o desempenho deles tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade, personificados pelo diretor e sua equipe. Imagino que para os catadores a imagem que o cineasta faz deles é a de que são, no mínimo, ladrões e vagabundos etc. senão não esconderiam seus rostos por vergonha ou medo como inúmeras vezes é mostrado no documentário. Neste sentido, a frase de um dos entrevistados é sintomática: "todo mundo aqui tá trabalhando, não tem ninguém roubando aqui dentro, todo mundo trabalha, ninguém rouba… todo mundo tá aqui porque depende…" Sendo que no final da sua fala é aplaudido pelos outros companheiros, como se realmente estivesse no palco de um teatro…
Ao interagirem com o cineasta (catadores e catadoras) imediatamente procuram incorporar uma personagem cujos atributos fundamentais estariam cheios de valores oficiais positivos comuns da nossa sociedade tais como honestidade, integridade, disposição para o trabalho etc. que estariam sendo desmentidos pelo cenário (o lixão) e pela aparência dos atores (estão sujos e mal vestidos).
O exemplo que sintetiza e ilustra mais claramente o que estou esforçando-me por demonstrar é o modo distinto de agir da personagem Jurema. Quando interpelada pela primeira vez no Vazadouro de Itaoca ela dirá, muito irritada: “… a gente não cata essas coisas aqui do lixo pra comer não, vocês botam no jornal e aí quem vê pensa que é pra gente comer, né? Mas não é pra gente comer, não é. Isso não pode acontecer. A mãe dela tem porco, o pai dela tem porco, todo mundo tem porco aqui. O que a gente cata aqui… às vezes a gente cata um pão, cata um resto de comida… é pra porco! Eu tô revoltada é com isso. A gente com o cesto cheio de legumes e ele filmando ali. Quem vê isso lá fora vai falar que é aquilo ali que eles comem, é daquilo que eles vivem, mas não é”.Quando apresentada diante da casa, ela aparece na porta e vem falar junto às crianças, aparece também a mãe dela e abre a janela, depois vem o marido na outra janela.
Diante da casa e de toda sua família, seu maior orgulho como deixa transparecer claramente, de roupa limpa e banho tomado, portanto, cenário e aparência mais adequados, Jurema pode encarnar a personagem da mãe e esposa, apesar de tudo, feliz, da mulher trabalhadora e honesta sem ter que tentar por todos os meios convencer o cineasta do que está afirmando.
Cenário, aparência e maneira juntam-se harmoniosamente e permitem uma representação eficaz, segura e sem hesitar.
O documentário se desvincula da pretensão de registrar uma realidade monolítica e arranca dela contradições e ambigüidades, que por sua vez são capazes de redimensioná-la, redescobri-la e, no limite, reinventá-la.

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